quinta-feira, 19 de maio de 2011

A ética na captura de registros de aves por Emerson Kaseker

Foto: Luciano Monferrari
Palestra ministrada por Emerson Kaseker durante o Avistar 2011


"No início do ano fui convidado pela organização do Avistar para apresentar uma palestra sobre a questão da ética na observação de aves.

Argumentei que certamente haveria pessoas mais qualificadas do que eu para falar sobre este tema, considerando que sou neófito na observação de aves, da “nova geração”, já que estou praticando a observação intensamente apenas a partir de 2006, embora tenha ganhado meu primeiro Guia de Aves em 1991, época em que eu observava aves no Instituto Butantan nos finais de semana.

A Organização do Avistar insistiu que gostariam de alguém da “nova geração” de observadores, por isso, me senti na obrigação de atender ao convite.


Foto: Luciano Monferrari
INTRODUÇÃO AO TEMA

Feita essa apresentação, vamos ao tema, que é a questão da ética na captura de registros de aves.

Notem que o título, propositalmente, se refere “à captura de registros” e não à observação de aves. Isso porque a observação de aves, pura e simples, é uma atividade potencialmente pouco danosa às aves e ao ambiente, dada a sua natureza contemplativa, mesmo que eventualmente imbuída de viés cientifico.

Já a captura de registros, principalmente no que se refere à captura de imagens das aves, é uma atividade com um alto potencial negativo para estas, tendo em vista a necessidade de aproximação e assédio inerentes a este tipo de objetivo.

Assim, será tratado aqui apenas a questão ética relacionada à captura de registros de aves.


DEFINIÇÕES

A ÉTICA

“Estudo dos juízos de apreciação que se referem à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente à determinada sociedade, seja de modo absoluto.”
Fonte: Novo Dicionário da Língua Portuguesa - Aurélio

“Parte da filosofia que estuda os valores morais e os princípios ideais da conduta humana. Conjunto de princípios morais que se devem observar no exercício de uma profissão.”
Fonte: Dicionário Michaelis

“É o ramo da filosofia que busca estudar e indicar o melhor modo de viver no cotidiano e na sociedade. Diferencia-se da moral, pois enquanto esta se fundamenta na obediência a normas, tabus, costumes ou mandamentos culturais, hierárquicos ou religiosos recebidos, a ética, ao contrário, busca fundamentar o bom modo de viver pelo pensamento humano.”
Fonte: Wikipédia

Nota-se, pelas variadas definições que se atribuem à esta palavra, que se trata de tema bastante subjetivo.

Como não estamos aqui numa apreciação científica, não pretendemos nos aprofundar na definição de ética, mas sim na sua relação com nossa atividade. Portanto, vamos adotar uma forma simples de defini-la, no contexto de nossa abordagem.

Assim, proponho que adotemos para essa discussão que ora iniciamos, a definição de ética como o “conjunto de princípios ideais da conduta humana durante a captura de registros de aves”.


OS REGISTROS

No contexto abordado, os registros podem ser classificados, no que se refere à sua autoria e destinação, em científicos, profissionais e de observadores.

Os registros científicos são aqueles realizados por cientistas (ornitólogos) e destinados essencialmente ao desenvolvimento científico da ornitologia.

Os registros profissionais são aqueles realizados por profissionais (ornitólogos ou fotógrafos) e contextualizados em sua atuação profissional, destinados a instruir estudos ambientais relacionados à implantação de empreendimentos ou edição de publicações sobre aves ou natureza.

Os registros de observadores, os quais serão tratados aqui, são aqueles, como o próprio nome diz, realizados por observadores de aves, cuja destinação principal é o lazer dos autores, mas que, recentemente, vêm ganhando mais importância científica, pela quantidade de informações consubstanciadas.

Quanto ao tipo, os registros podem ser classificados em 5 classes:
- O visual, que se refere à observação da ave e identificação da sua espécie;
- O auditivo, que obviamente refere-se à audição da vocalização e identificação da espécie;

- O fotográfico, que se refere à captura fotográfica de uma imagem da ave;
- O sonográfico, que se refere à captura e gravação da vocalização de uma ave e
- O físico, que se refere à captura da própria ave.

No âmbito do observador de aves, apenas os quatro primeiros tipos são permitidos legalmente.

A captura de animais só pode ser praticada por profissionais habilitados e com autorizações específicas dos órgãos de meio-ambiente governamentais.

Não será abordada aqui a questão ética relacionada aos registros científicos e profissionais, até porque eu não tenho habilitação nem conhecimentos suficientes nessas áreas, nem estamos aqui num evento científico, este evento é de caráter essencialmente amador.

Embora não seja aqui abordada a questão ética relacionada aos observadores de aves, na acepção restrita do termo, ou seja, aqueles que apenas observam as aves sem realizar registros fotográficos ou sonoros, pelos motivos apresentados anteriormente, os observadores que também fazem registros de aves serão tratados simplesmente como “observadores de aves”, pois sua atividade inclui também a observação pura e simples.


A ÉTICA NA CAPTURA DE REGISTROS DE AVES

Iniciando propriamente a abordagem do tema, proponho que tratemos dos fundamentos da ética, de como ela é construída, estruturada, de como ela se desenvolve, da sua importância e de como ela se aplica. Quais são seus limites e o que força estes limites.


A DINÂMICA DA ÉTICA


A construção da ética por uma sociedade depende do julgamento coletivo concebido por ela a respeito do que é correto ou não.

O conceito do que é certo ou errado de uma sociedade depende do nível de informação dos indivíduos que a constituem.

Toda sociedade tem como característica intrínseca a evolução a partir da experiência e da transmissão desse conhecimento.

Consequentemente, podemos admitir que a ética de uma sociedade evolui com o tempo, a partir de suas experiências e da sua educação, cujo consenso decorrente constrói seus conceitos do que é bom ou ruim, certo ou errado, da conduta que é recomendável ou não.


Foto: Silvia Linhares
A IGNORÂNCIA: O PRINCÍPIO DE TODOS

Ninguém nasce sabendo, tudo de se aprende ao longo da vida

Portanto, a ignorância é o primeiro estágio de todo iniciante em alguma atividade. A ignorância vem primeiro.

O SURGIMENTO DO CONSENSO

A partir de uma experiência, o ser humano, em função de sua inteligência e consciência, adquire um conhecimento e é capaz de transmiti-lo aos seus semelhantes. Essa é a essência da evolução humana, que nos distinguiu dos demais animais.

No âmbito de nosso tema, a experiência de realizar um registro gera um conhecimento para seu autor, ele passa a conhecer parte do comportamento, das reações das aves objetivadas. Fica conhecendo, também, eventualmente (depende da sua sensibilidade), algumas conseqüências de sua ação.

Exemplo: o cidadão que pegou o filhote do ninho para dar para a sua filha segurar na mão. O filhote fugiu para o vizinho e ele nunca mais o viu. Percebeu seu erro e declarou ter aprendido a lição, com pesar, desculpando-se publicamente pelo ocorrido.

Essa experiência é comunicada aos demais observadores, com os quais o indivíduo se relaciona e, eventualmente discutido publicamente, em fóruns ou sítios afins na rede mundial de computadores. Enfim, a comunicação deste conhecimento gera um diálogo, com troca de informações, que pode ser objeto de crítica, desenvolvendo assim o assunto. O resultado é o consenso sobre o conhecimento adquirido pela experiência vivida.


O SURGIMENTO DOS CÓDIGOS DE ÉTICA

Do consenso resulta a definição de padrões de conduta que possibilitam a criação de Códigos de Ética, os quais são adotados por entidades diversas, como associações, comunidades, etc.


A EVOLUÇÃO DOS CÓDIGOS DE ÉTICA

Estes códigos de ética, que passam a orientar a conduta daqueles que os adotam e, consequentemente, passam a interferir nas experiências destes indivíduos, que levam a novos conhecimentos já baseados numa determinada ética, os quais, por sua vez, alimentam a origem da formação do consenso, conforme proposto anteriormente, formando um “circulo virtuoso”. Temos a evolução dos conceitos éticos e, em decorrência, dos Códigos de Ética.


A IMPORTÂNCIA DA ÉTICA NA CAPTURA DE REGISTROS DE AVES

Toda ação envolvida na captura de registros de aves tem conseqüências, algumas positivas, outras negativas.


CONSEQUENCIAS POSITIVAS

Como conseqüência positiva, temos a valorização das aves e, consequentemente, de seu ambiente. Isso se dá a partir da informação.

As pessoas, ao constatarem a riqueza exibida em detalhes pelos registros fotográficos, e mesmo sonoros, passam a admirar e respeitar mais as aves e seus ambientes. Algo na linha de “conhecer para preservar”, slogam que faz sucesso nas campanhas de defesa do meio ambiente.

Outra conseqüência positiva desses registros é a sua contribuição ao meio científico que, em função de sua quantidade, em que pese suas eventuais deficiências qualitativas, constituem relevantes fontes de informações ornitológicas.

Finalmente, também é positivo o efeito atrativo para a atividade de observação de aves que estes registros exercem sobre quem deles toma conhecimento, agregando cada vez mais adeptos à prática.


CONSEQUENCIAS NEGATIVAS

Do ponto de vista negativo, ao qual a questão ética se relaciona diretamente, as conseqüências negativas podem ser diversas, podendo ser classificadas em diretas ou indiretas.

As conseqüências diretas seriam aquelas que podem molestar fisicamente as aves, como a própria captura da ave (seu aprisionamento) visando facilitar a obtenção do registro, a queda de filhotes de ninhos causadas pela tentativa de fuga dos mesmos decorrente da aproximação excessiva do observador ou lesões oculares causadas por uso excessivo de flashs.

Ou, ainda, como conseqüências diretas podem ser consideradas as conseqüências que podem alterar o comportamento das aves, como o uso excessivo de playback, técnica utilizada para atrair as aves.

Embora este assunto seja polêmico, não há como desconsiderar a influência desses métodos no comportamento das aves, que varia de espécie para espécie, mas têm um inegável potencial danoso para algumas delas.

Há ainda os comedouros, que por alguns é considerado uma prática danosa. Embora eu discorde frontalmente desse entendimento, não poderia deixar de registra-lo aqui, já que há quem acredite que esta prática “vicie” as aves a comerem no local e as tornem “inaptas” a buscarem comida na natureza.

Wuo
Não é o que vejo na prática, comedouros ficam vazios no período de alimentos fartos nas matas e pomares, além disso, excesso de alimento induz ao aumento populacional, portanto, não vejo como campanhas de “fome zero” para as aves possam ser prejudiciais a elas.

Por fim, temos as conseqüências negativas indiretas, que podem ser representadas pela alteração no meio local de um ninho, como a remoção da vegetação que lhe serve de camuflagem, visando a facilitação ou melhoria da “qualidade” do registro. A palavra qualidade foi grifada porque refere-se á qualidade estética do registro, não à sua qualidade enquanto registro, seu valor como informação.

Outra conseqüência negativa indireta é o exemplo que uma conduta oferece àqueles que dela tiverem conhecimento. É normal no comportamento humano a imitação de comportamento, “nada se cria, tudo se copia”. Assim, condutas condenáveis perante os padrões éticos consubstanciados nos códigos de ética são sementes replicantes destas ações.

Além disso, deve se considerar que muitas vezes o que importa não é o que aconteceu, mas o que pode parecer que aconteceu.

Exemplo: um indivíduo encontra uma ave caída no chão. Recolhe-a, trata-a e a solta, quando esta se restabelece. Entretanto, antes de soltá-la, ele a fotografa em suas mãos e posta esta imagem num sítio qualquer na internet.

O fato ocorrido é que o indivíduo “fez bem” à ave, ajudou-a a se recuperar, pode até ter-lhe salvo a vida, porventura. Porém, a imagem da ave na mão irá incentivar que pessoas menos avisadas tenham vontade de ter nas mãos uma avezinha, como na foto, o que podem realizar ao encontrar um ninho com filhotes, por exemplo, ou mesmo incentivar a captura de aves com arapucas.

Por isso, mais importante do que a ação em si registrada numa imagem é o que ela pode despertar naqueles que a verão.

Há ainda comportamentos anti-sociais decorrentes de desvios de conduta e fraudes praticadas objetivando galgar melhor status perante a comunidade.


A APLICAÇÃO DA ÉTICA

Os conceitos éticos desenvolvidos por uma associação ou comunidade podem ser consubstanciados na forma de um Código de Ética, que visam orientar seus membros nas suas condutas individuais ou coletivas, de modo que suas ações respeitem o consenso do que é uma conduta ideal.

A ética também serve como elemento balizador nas discussões em fóruns, seja presenciais ou através da internet. Neste caso, a introdução da ética no debate interfere na sua própria evolução, conforme proposto anteriormente, redefinido os seus conceitos a partir do debate de idéias.

Da mesma forma ocorre nas relações interpessoais, onde a ética pode ser introduzida no diálogo, seja como crítica ou elogio. Porque a ética se impõe sobre aqueles que a adotam, e os impedem de se calarem quando constatam condutas inadequadas segundo sua crença.


OS LIMITES DA CONDUTA ÉTICA

Chegamos ao ponto crítico do tema: quais são os limites extremos na conduta, aceitáveis pela ética?

São aqui apresentados três situações, sendo duas limítrofes e uma intermediária.

Ou seja, no limite mínimo, uma conduta que ninguém contesta sua condição anti-ética: capturar a ave para registra-la.

Num exemplo próximo ao máximo, uma conduta que muitos acharão engraçada, ou exagerada, ridícula até, que seria afastar-se de uma ave que esteja alimentando-se, caso o observador não a queira registrar, para evitar interromper-lhe a refeição.

No campo intermediário, onde ninguém nem contesta nem acha exagero (espero), podemos citar o uso excessivo de playback.

É este o terreno que precisa ser debatido, construído e informado.


AS PRESSÕES CONTRA A ÉTICA

A curiosidade, o instinto de poder, o instinto possessivo humano (o “ter” humano), a busca do destaque individual e o instinto competitivo humano são elementos que pressionam seus limites éticos na sua conduta durante a captura de registros.

Essas pressões levam ao conflito entre a ética pessoal e a ética coletiva.

A tentação do registro melhor torna confuso o limite entre agir com ética e “sair um pouco da ética”.


A COMPETITIVIDADE HUMANA

Este é um instinto motor da civilização, que promove a evolução. É nas competições (ex: Phillips x Sansung = tela led’s) que a ciência e as tecnologias são desenvolvidas de maneira construtiva, ou seja, de forma digna.

Ela está presente desde os programas infantis na televisão, nas escolas, nos clubes, no esporte, na vida social, é inerente ao ser humano e é reconhecidamente saudável.

Toda competição é saudável. Buscar ser o melhor em alguma atividade e premiar os melhores são procedimentos saudáveis.

Eventuais atitudes desvirtuadas devem ser consideradas como desvio de conduta, não como parte do processo competitivo.

Claro que, como tudo, tem também seus aspectos negativos.

A competição se opõe ao princípio da igualdade entre as pessoas, sendo este o seu “lado” negativo, esta a origem de seus aspectos negativos.

A seguir são apresentados os principais aspectos positivos e negativos da competitividade humana relacionados observação de aves.

Como aspectos positivos da competitividade humana, no que se refere à captura de registro de aves, temos o desenvolvimento de técnicas fotográficas, dos próprios equipamentos, o desenvolvimento das habilidades humanas, o próprio desenvolvimento da ética e a integração social.

Do lado negativo, as pressões causadas pela competitividade na captura de registros de aves podem levar à agressão física destas, à alteração de seus ambientes, a prática de fraudes e os comportamentos anti-sociais.

O IMPACTO DA INTERNET NA CAPTURA DE REGISTROS DE AVES

Assim como revolucionou todas as demais atividades humanas, o advento da internet causou enorme impacto na observação de aves no Brasil.

Primeiro surgiram grupos de discussão, depois sítios para postagem de fotos, os quais evoluiram gradativamente para sítios específicos para postagem de registros de aves brasileiras (imagens e sons) e por aí vai...

Neste contexto, destaca-se o Aves Brasil, criado pelo Jefferson Silva, que foi o responsável, por exemplo, por eu me dedicar mais assídua e empenhadamente a uma atividade que eu já praticava desde os idos de 1990, como foi também responsável pela introdução do Reinaldo Guedes à observação de aves, que depois veio criar o WikiAves, entre algumas centenas de outras pessoas, a maioria delas hoje representando significativa importância na comunidade de observadores de aves.

E destaca-se, também, o WikiAves, que, atualmente, representa a principal porta de entrada para os neofitos na observação de aves, sendo responsável pela mudança no ritmo de crescimento da comunidade de observadores de aves, passando da progressão aritimética para a progressão geométrica.

Vamos aos números:

• 6.500 usuários
• 16.000 registros sonográficos
• 250.000 registros fotográficos
• 500 registros fotográficos por dia
• 84.000 visitas/mês setembro de 2010)
• 2.400.000 pageviews/mês (novembro de 2010)
• 10 usuários novos por dia

Atualmente, a maioria dos novos usuários do WikiAves são neófitos na atividade, o que significa que geralmente têm pouco conhecimento sobre as peculiaridades da atividade, principalmente das questões éticas envolvidas.

É importante destacar, entretanto, que a base sobre a qual se desenvolveu a interferência da internet na comunidade de observadores de aves brasileira foi construída ao longo de décadas (desde os anos 70), pelas entidades e pessoas precursoras, tais como COA’s e entidades afins.

CONCLUSÃO

No que se refere à ética na captura de registros de aves, atualmente, mais urgente do que a discussão de seus limites em si, posto que já existem códigos publicados por diversas entidades, surge a necessidade de educação dos milhares de neófitos agregados anualmente à comunidade, sendo dever e responsabilidade de todos observadores experientes participarem dessa construção.


Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.

Emerson Kaseker

O código de ética da American Bird Association está disponível em português nessa página do site do CEO

2 comentários:

  1. Assisti a palestra no Avistar, gostei muito!
    Parabéns Emerson!

    ResponderExcluir
  2. Parabéns ao Emerson pela excelente explanação sobre a Ética e ao pessoal do CEO pela disponibilização neste excelente blog.

    Vida longa a toda forma de defesa das aves e do meio ambiente.

    Abraços

    Paulo Guerra

    ResponderExcluir